Um angolano híbrido nas origens transmontanas dos
pais. Ele no entanto, nascido em 1936 em Luanda, conta-me a sua irmã
mais nova Irene, era um estudante enviesado que não prestava muita
atenção às coisas para que se educavam os meninos da época, médicos
ou engenheiros, quando muito doutor advogado.
No entanto, as
suas mãos remexiam em coisas nojentas como o barro e a lama,
professores e família atónitos foram descobrir um busto de Camões
feito pelo menino Zeca, como lhe chama a mana Irene.

Era o drama de ser oleiro no tempo dos doutores
que se faziam nos banquinhos de aplicação. Ele nascera-o, já feito
de outros talentos, como se confirma hoje com a sua obra, que se
confunde com a sua e as nossas vidas de todos os dias.
José
Rodrigues é formado em Escultura pela Escola Superior de Belas-Artes
do Porto (EBASP), onde viria a dar aulas também.
Ecléctico, o seu
trabalho é multidisciplinar e vai da medalha à gravura, passando
pela cerâmica, ilustração e cenografia por exemplo, quando trabalhou
com o Teatro Experimental de Cascais e o Teatro D. Maria II.
Em
1988 dedica-se à animação cultural e com alguns parceiros funda a
Cooperativa Árvore que tem a vocação de desenvolver um projecto de
ensino que englobasse várias linguagens criativas.
É nessa
perspectiva que vários dos mais destacados artistas plásticos
angolanos da actualidade beneficiam de formação. Estava garantida
mais uma das muitas pontes de cultura que organizou ao longo dos
anos.

É sobretudo como escultor que vimos associado o
seu nome, embora dinâmico e irreverente, sempre experimentando
diversos sentidos e formas de abordagem para depositar o seu
talento. Assim fez-se escultor de fama mundial, com presenças nas
bienais de Veneza e São Paulo. Prémio Soctip de Artista do Ano em
1990.
Condecorado com o grau de Grande Oficial da Ordem do
Infante D. Henrique, em 1994, a sua obra está aí no caminho de todos
os dias dos portugueses, seja na rua, seja no interior de uma
igreja. O seu campo de trabalho é sua moradia.
O Convento de
Sanpayo verticalizado no alto de Vila Nova de Cerveira. Lá bem no
alto como o artista. Foi lá que encontrei o homem que entende que o
“consenso é mau. Eu sou um homem de atritos, de tensões…sem tensão
não há cidade, não há cultura, não há ensino”, disse uma vez aquele
que “gostaria imenso que arte fosse o lugar dos
jovens”.
Angola Digital: Aqui em Viana do
Castelo diz-se que o senhor construiu uma extensão de Angola. Como
foi isso possível?
José Rodrigues: É claro que
isso só foi possível porque havia pessoas com os ouvidos limpos e
sem doenças, que ouviram as minhas palavras e puseram-nas em
prática. Defensor Moura é um homem muito atento. Ele tem uma
sensibilidade muito especial para as questões da Lusófonia, falou ao
Abreu (Alberto A. Abreu) e há mais gente e a coisa fez-se.
Eu
sinto-me orgulhoso por ter tido a ideia, eles tem o mérito de a ter
realizado. São dez anos não é? Essa Câmara é realmente única. Ver
aqui o Ministro Boaventura Cardoso, o Embaixador Antero Abreu, a Ana
e essa gente toda a falar de Angola é absolutamente comovente.
A
minha tese é esta: eu gosto muito dos engenheiros que fazem as
pontes de betão, mas gosto mais dos engenheiros que fazem pontes de
cultura. Essas que unem mais. O que estamos aqui a assistir é um
acto afectivo e isso é que é importante. Repara que estamos todos
aqui com lágrimas nos olhos, o que até parece mal, porque temos o
sentido da inversão. Repara, tu estás a falar comigo, como se fosses
meu irmão, se calhar és mesmo meu irmão, porque ser irmão não é
nascer da mesma mãe, é ter ideias com afinidade como nós
temos.
AD: Acho que o mais importante é
teres erguido uma ponte que se eleva cada vez mais e permita mostrar
aqui um país com vitalidade, onde se constrói muito a ideia de que
somos de um país moribundo, onde nem sempre a arte está relacionada
com a vida…
JR: É verdade. Infelizmente é
verdade. Tens toda a razão e tocaste aqui num aspecto importante. Eu
acho que há poucas pontes para Angola. Há ao nível das poucas
pessoas, mas não há por exemplo ao nível do ensino efectivo.
Tu
vais estar em Cerveira e vais ver como nós fizemos há dez anos a
primeira vinda de estudantes angolanos para cá. E foi bom, tudo
correu muito bem, o Jorge Gumbe é um produto disso, o Van, mais
gente que anda por aí. Infelizmente não houve consequências
disso.
É pena. Acho que entre lá e cá ainda há um complexo de
culpa. Portugal e Angola ainda falam com os olhos postos no chão. Já
é altura de olharmos um para o outro. O que está feito está feito, é
história. Sei que há traumas mas, os filhos já não têm esse trauma,
há uma geração que já está limpa.
Então que vão para lá e que
venham de lá, que estamos condenados a coexistir uns com os outros.
Portugal tem um destino que é África e nós temos a língua que, em
muitos casos da Europa, é um factor de separação. No nosso caso ela
une.
AD: Como é que Angola aparece na sua
arte?
JR: Eu explico. Angola é a
sensualidade. Angola é magia para mim. Portugal deu-me, porque
estudei cá e fui também professor, Portugal mostrou-me o pecado,
coisa que não há em Angola. A sensualidade de lá, cá foi-me vetada.
De facto a sensualidade é uma arma para libertar o ser humano, tão
forte como uma metralhadora. Cá não há. Foi lá onde aprendi. Ver as
crianças e as mulheres a dançarem é maravilhoso. Cá não, tapavam-se
logo, cobriam-se com panos pretos.
Portugal só agora se começa a
desbravar, porque houve aqui uma certa repressão, um certo velório,
reconheço que este velório está a acabar e está a nascer uma nova
gente, sem vergonha de mostrar o peito, uma perna ou o ventre, isto
está acontecer e é óptimo.
AD: Essa luz que
tem Portugal é um indício africano?
JR: É
verdade. Mas há uma coisa que é perigosa. Olha para ali (mostrando
edifícios e monumentos). Século doze, século dezassete. Ora, é
preciso conciliar o passado: este e o futuro que é África. Isso aqui
o que são? São fantasmas. Isso dá-te a volta à cabeça. Em Angola o
que é que tens?
Tens a grande mata, tens o céu imenso, tens a
praia, tens o barulho da floresta que cá não há, aquele barulho
esplendoroso, o cheiro pá.
O cheiro da terra (p.q.p). Não te
esqueças de tirar o p.q.p, mas o cheiro da nossa terra é uma coisa
que não há em parte nenhuma. Por isso, aqui é isso: os fantasmas do
passado (que é bom), mas é perigoso.
Lá não. Fazes tudo o que quiseres, lá é o caminho. Eu acho que
me dou bem com esses dois sentimentos. E tens razão, aqui há uma luz
esplendorosa. Mas em Angola há mais luz.