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O que significa esta nova experiência poética de Alberto da Cunha Melo -
O cão de olhos
amarelos?
Começo atentando para o procedimento de composição que o poeta adotou de
modo sistemático. A repetição é aqui estrutural, pois se dá não só no
interior de cada estofe, mas serve de leixa-pren atando as
quintilhas entre
si. O
efeito é encantatório como na poesia ritual que habita as fórmulas
mágicas, antiga função religiosa que ainda sobrevive. O rito renasce, de
algum modo, na música e na dança que não dispensam a reiteração do som e
dos gestos. A magia penetra as renkas de Alberto da Cunha Melo conferindo
insólita beleza a esta sua última
criação.
Mas quer-me parecer que O cão de olhos amarelos vale-se da retomada
frásica e rítmica com vistas a outro efeito, a rigor oposto ao da melopéia
encantatória. Trata-se de um modo de compor que tem a ver com o desígnio
intelectual de chamar a atenção para o cerne semântico do poema. Um dos
traços molestos da cultura pós-moderna é certa multiplicação incoercível
de mensagens, beirando a vertigem e minando por dentro as forças da
atenção e da memória. Um antídoto válido à dissipação do espírito do
leitor é precisamente a repetição pensada de idéias e sentenças. A nova
poesia de Cunha Melo traz esse estímulo à inteligência: convida o leitor a
deter-se no sentido de cada frase, é um plus de energia
significante que “dá a pensar”, para dizê-lo com a fórmula incisiva de
Paul
Ricoeur.
No entanto, esse trabalho formal entre mágico e cognitivo não foi
construído para si próprio, não é um mecanismo autodecorativo, puro
desfrute da linguagem pela linguagem. Ao contrário, volta-se para um
núcleo rico de dimensões existenciais. Reencontro nestes poemas o criador
original de Yacala modulando em tom menor o mistério da vida nos
seus confins com a morte. E reconheço veios de uma forte tradição
nordestina de poetas da agonia e dos extremos. Aqui ressoam a voz
dramática de Augusto dos Anjos, a voz faca-só-lâmina de João Cabral, as
vozes lancinantes de Nauro Machado, as muitas e vertiginosas vozes de
Ferreira Gullar. O
imaginário é diferente, peculiar a cada poeta, mas em todos repontam a
intuição da finitude da carne e o anseio de reter na palavra o pathos do
amor e do sofrimento. Percebo um ar de família que aparenta fisionomias
diversas, um olhar severo mas ardente que séculos de experiências comuns
acabaram
formando:
Um dia temos de
escolher
entre a dor que já
padecemos
e a que tentamos inventar.
Alfredo Bosi, escritor e crítico literário, é diretor
do Centro de Estudos Avançados da USP e membro da Academia Brasileira de
Letras.
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